quinta-feira, 20 de novembro de 2008

TRANSIÇÃO DEMOGRÁFICA NO BRASIL:
UMA AGENDA PARA PESQUISA*
André Cezar Medici**
Kaizô Iwakami Beltrão***
Resumo
Este texto procura discutir algumas abordagens sobre a
conformação do processo de transição demográfica, em
nível geral e no Brasil. Identifica lacunas associadas a
esse processo no caso brasileiro, destacando os aspectos
relacionados à transição da mortalidade. Em seguida,
propõe algumas linhas de investigação que procurem
estabelecer alguns nexos explicativos sobre o processo
de transição da mortalidade no Brasil, com base na relação
entre a natureza do desenvolvimento econômico e a
dinâmica das políticas sociais, particularmente as de
saúde.
* Trabalho apresentado na “IV Conferencia Latinoamericana de Población”, realizada na
Cidade do México, de 23 a 26 de março de 1993.
** Coordenador da Área de Políticas Sociais do Instituto de Economia do Setor Público
(IESP/FUNDAP) em São Paulo e presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde
(ABrES).
*** Superintendente da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE) do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) e membro da Diretoria da Associação Brasileira de Estudos
Populacionais (ABEP).
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teoria tradicional da transição demográfica apresenta, como
ponto de partida, três postulados centrais. O primeiro deles
consiste no princípio da precedência no tempo da queda da
mortalidade. Segundo este postulado, a transição demográfica
se inicia com a redução da mortalidade, em função de conquistas associadas
ao progresso técnico, tais como melhoria dos sistemas de saneamento
(especialmente nas cidades) e o combate a doenças transmissíveis.
A alta mortalidade, especialmente a infantil, seria, portanto, o maior
estímulo à manutenção das elevadas taxas de fecundidade no período
pré-transicional.
O segundo postulado seria o da transição reprodutiva, a qual ocorreria
em duas fases. Em primeira instância, o retardamento dos casamentos
e, posteriormente, o controle da fecundidade por parte das pessoas que
vivem em união. Assim, as taxas brutas de mortalidade e de fecundidade
passariam a decrescer em valores assintóticos uma em relação a outra,
a partir de um dado momento no tempo, em que a fecundidade iniciaria
a sua queda. Vale dizer, também, que a fecundidade seguiria caindo a
partir do ponto em que a mortalidade atingiria um certo equilíbrio, deixando
de cair ou caindo a taxas mais brandas.1
O terceiro postulado seria dado pelas influências do crescimento econômico
moderno, no sentido atribuído por Simon Kuznetz,2 que destaca
a importância dos mercados na mobilidade e na dinâmica do crescimento
populacional. Neste ponto, a expansão do comércio mundial e a
dinâmica da urbanização e da modernização agrícola, expulsando mãode-
obra do campo para a cidade, teriam tido efeitos no sentido de incrementar
o processo de queda da fecundidade.
Um estudo recentemente elaborado por Chesnais (1986) revela que a
experiência histórica de muitos países permite encontrar lacunas nesse
processo, principalmente relacionadas:
a) à noção de equilíbrio pré e pós-transicional. Muitas das experiências
históricas mostram momentos em que a fecundidade flutua antes e depois
do período de transição demográfica, destoando da natureza do
processo correntemente descrito como padrão. Na análise de experiên-
1 Este argumento foi desenvolvido por Artzroundi (1986).
2 Ver sobre esse ponto Kuznetz (1986). Atenção especial deve ser dada ao capítulo II,
"Características do Moderno Crescimento Econômico".
A
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cias históricas, altera-se, também, a variável tempo. Os eventos associados
à transição demográfica ocorrem, no tempo, com densidades distintas,
quando são considerados os diferentes processos de transição
demográfica, em nível mundial;
b) ao caráter de população preponderantemente fechada como quadro de
referência. O modelo tradicional de transição demográfica não leva em
conta as influências que a migração de contingentes populacionais, com
características socioculturais distintas e padrões reprodutivos diferenciados,
podem exercer no retardamento ou aceleração do processo de
transição demográfica; e
c) à ênfase no componente "mortalidade" como fator "ativo" na dinâmica
da transição e à pouca atenção dada à influência que reciprocamente é
exercida entre variáveis demográficas e econômicas. Se a queda da
mortalidade tem sido analisada como decorrência do crescimento econômico
e social, pode-se dizer, analogamente, que a queda da mortalidade
também tem sido um importante fator impulsionador do crescimento
econômico. Estas influências recíprocas podem ser observadas,
nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, ao longo do período
1950-1980. Como a queda da mortalidade está altamente associada
ao combate de grandes endemias, pode-se dizer que ela ocorre conjuntamente
com uma etapa da transição epidemiológica,3 que é mais favorável
ao aumento da produtividade do trabalho.
3 Define-se como transição epidemiológica o processo de mudança na incidência ou na
prevalência de doenças, bem como nas principais causas de morte, ao longo do tempo. Esse
processo está, em geral, condicionado por dois fatores: a) mudanças associadas à estrutura
etária da população, ocorridas ao longo do processo de transição demográfica e propiciadas
pela rápida queda da fecundidade em um contexto mais suave de declínio da mortalidade; b)
mudanças no grau e no estilo de desenvolvimento, caracterizando a passagem de
sociedades rurais para urbanas, bem como na elevação dos níveis de assalariamento e
monetarização da sociedade, aumento na cobertura dos serviços sociais básicos de saúde,
educação, aumento na distribuição da renda nacional, etc. Laurenti, citando Omran, costuma
definir três momentos de transição epidemiológica ao longo da história: 1 - o período das
pestilências e da fome, quando a mortalidade era alta e oscilante, impedindo ou dificultando o
crescimento populacional continuado — neste período, a esperança de vida (E0) era baixa e
variava entre 20 e 40 anos; 2 - o período de desaparecimento das pandemias, em que a
mortalidade caiu progressivamente, e a magnitude desse declínio é maior à medida que os
picos epidêmicos se tornam menos freqüentes ou desaparecem. A esperança de vida ao
nascer passa a aumentar, às vezes rapidamente, atingindo 50 anos. O crescimento
populacional é contínuo e exponencial ao longo do período; 3 - o período das doenças
degenerativas e das doenças provocadas pelo homem, onde a mortalidade continua a
declinar ou a se estabilizar em níveis bem baixos. A esperança de vida ao nascer aumenta
gradualmente, ultrapassando os 50 anos e a fecundidade passa a ser a mais importante das
variáveis que regulam o crescimento populacional. Sobre este assunto ver Laurenti (1990) e
Omran (1971).
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Certamente que a teoria da transição demográfica encontra-se fortemente
correlacionada com a questão da transição da fecundidade. No
entanto, uma breve análise das correntes revela, pelo menos, a existência
de duas formas de abordagem da questão:
a) análises macroeconômicas, que procuram vincular a queda da fecundidade
a fatores gerais como a escassez de recursos e a ausência de
perspectivas econômicas da população,4 ou interpretações associadas
às transformações que se operam na natureza das relações de produção
e na dinâmica dos mercados, gerando novos padrões de comportamento
reprodutivo, assumidos por muitos como sendo de difícil reversibilidade
no tempo;5 e
b) análises microeconômicas, que procuram avaliar a questão da queda
da fecundidade como sendo uma decisão baseada em critérios custobenefícios
realizados pelas próprias famílias; dessa forma, coerentemente
com a teoria neoclássica das expectativas racionais, os filhos
seriam planejados pelas famílias, em função de um balanço econômico
das implicações decorrentes sobre a decisão de tê-los ou não tê-los.6
Todas essas questões mostram a dificuldade de se obterem análises
padronizadas sobre os processos de transição demográfica, notadamente
em função das distintas abordagens relacionadas ao peso exercido
pelas variáveis sociais (especialmente no que diz respeito aos arranjos
familiares, forma, composição e natureza das relações familiares) e
econômicas (natureza e evolução do processo de trabalho e dos mercados
internos e externos), na dinâmica desse processo e em diferentes
contextos históricos e regionais.
4 Estas interpretações são, em geral, de origem malthusiana ou neomalthusiana. Um
estudo elaborado nessa perspectiva é o de Blanchet (1989). As hipóteses "catastrofistas"
defendidas pelo Clube de Roma nos anos 60, principalmente a partir do informe de Meadows
et alii (1978), também se inserem nessa tradição.
5 Estas interpretaçãoes estão na base das correntes de origem marxista ou históricoestruturalistas.
6 Esta corrente, próxima do pensamento de Chicago sobre o assunto, a qual vem sendo
chamada de "Teoria da Demanda por Filhos" ou ainda "Nova Economia Domiciliar”, tem
introduzido forte rigor analítico em suas abordagens. O trabalho pioneiro foi escrito por
Becker (1960). Mais recentemente, esta corrente foi incorporada pela teoria do capital
humano, sendo, inclusive, objeto de análise de um de seus formuladores, T.W. Shultz. Um
trabalho expressivo a esse respeito pode ser observado em Shultz (1974).
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1 Pontos para a Análise do Processo de Transição
Demográfica no Brasil e na América Latina
Ao analisar o processo de transição demográfica ocorrido nos países
latino-americanos, muitos autores têm discordado da "universalidade" da
teoria da transição demográfica, e de sua validade no contexto desse
continente. Assim, Mira (1986), ao analisar o processo de ocupação do
sul do Brasil, discute a validade da teoria clássica da transição demográfica,
ao encontrar um padrão distinto do verificado na Europa. A imigração
européia trouxe padrões tradicionais de comportamento reprodutivo
que foram modificados progressivamente com o contato com os padrões
previamente existentes no sul do Brasil.
Outros estudos, como o de Patarra e Ferreira (1986), apontam para as
diferenças dos processos de transição demográfica ocorridos nos países
de industrialização tardia, como o caso brasileiro.7
Existem trabalhos que questionam a validade da teoria das três etapas
seqüenciais da transição demográfica para a realidade brasileira e latinoamericana,
principalmente no que diz respeito à duração destas etapas.
Esta teoria afirma que a primeira etapa corresponde apenas à queda da
mortalidade. Na segunda, experimenta-se um período concomitante em
que ocorrem quedas da mortalidade e fecundidade. Por fim, na terceira
ocorrem apenas ajustes decorrentes da queda da fecundidade, sendo os
ganhos verificados na mortalidade apenas marginais.
Considerando-se a primeira etapa, a da queda da mortalidade, verificase
que, no Brasil, esta tem uma duração bastante rápida, pela aplicação
de técnicas médicas e sanitárias importadas dos países centrais, enquanto
que, nos países desenvolvidos, ela ocorreu de forma mais progressiva
e prolongada [Camargo e Saad (1990)].
Estudos como o de Wong (1987) discutem a mesma problemática por
outro ângulo, identificando a queda da fecundidade recente na América
Latina, como decorrência do empobrecimento das classes trabalhadoras
a partir dos anos 60 e 70. Esta interpretação, embora precedente, é
distinta da colocada por Souza (1987), que explica o caráter distinto da
7 O conceito de industrialização tardia, aqui definido, corresponde ao utilizado por Cardozo
de Mello (1986). Refere-se, basicamente, aos países cujo processo de industrialização
completou-se, ou encontrava-se em vias de se completar, após a Segunda Guerra Mundial.
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transição demográfica brasileira entre 1930 e 1980, pela presença de
processos micro e macrossociais tradicionais, que conseguiram conviver
com o desenvolvimento capitalista, determinando padrões de procriação
específicos entre as classes trabalhadoras.
Existem, ainda, os estudos ligados a interpretações sobre a dinâmica
regional, como a da cidade de São Paulo, que vinculam o caráter da
transição demográfica à natureza e à intensidade das imigrações estrangeiras.
8 Alguns desses estudos procuram vincular a dinâmica da
transição demográfica às distintas etapas do processo de crescimento
econômico e industrialização pelos quais passaram o estado e a cidade
de São Paulo.
Um livro clássico que articula o processo de crescimento demográfico
com a dinâmica da economia brasileira foi o escrito por Merrick e
Graham (1979). Este trabalho, feito por brasilianistas, foi estimulado pela
posição discordante do Brasil nos fóruns internacionais relacionados à
questão populacional, especialmente na Conferência de Bucareste,
sobre população, em 1974, onde predominou o discurso neomalthusiano.
Na análise da transição demográfica vivenciada pelo Brasil, estes autores
chegaram à conclusão que alguns processos histórico-sociais, como
a escravidão e a imigração européia, alteraram profundamente a estrutura
demográfica e socioeconômica do Brasil durante o período primárioexportador,
bem como ao longo das primeiras fases da industrialização.
Esses mesmos processos trouxeram fortes desequilíbrios regionais no
que tange aos caminhos traçados pelo desenvolvimento.
Como corolário desses desequilíbrios, passaram a ocorrer grandes fluxos
migratórios internos que explicam a recolonização rural (expansão e
ocupação das fronteiras agrícolas em regiões como o Norte e o Centro-
Oeste) e o acentuado crescimento urbano das últimas décadas, bem
como alguns de seus efeitos, como o desemprego e a miséria urbana.
O estudo feito por Merrick e Graham (1979) indica, dessa forma, que o
processo de transição demográfica no Brasil foi "atravessado" pelo crescimento
econômico excludente e pelos conseqüentes desequilíbrios
8 Sobre este ponto, existem os estudos de Posoli et alii (1987) e Patarra e Baeninger
(1988).
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regionais. Conseqüentemente, vive-se uma situação em que a transição
demográfica tem sido seletiva, tanto do ponto de vista espacial, como
social. Embora a mortalidade venha se reduzindo progressivamente no
país, os grupos de mais baixa renda continuam a deter taxas elevadas
de fecundidade — e em muitos casos de mortalidade —, acontecendo o
inverso com os segmentos de rendas mais altas. Tal situação, na visão
dos autores, traria obviamente problemas futuros, prejudicando ainda
mais a situação social dos grupos menos favorecidos.
A adoção de medidas de planejamento familiar tem sido defendida por
alguns como a forma das classes de renda mais baixa obterem a informação
e os meios adequados para reduzir sua fecundidade e, com isso,
terem condições sociais para alcançar melhores níveis de morbidade e
mortalidade.
Os dados mais recentes sobre fecundidade no Brasil, a partir dos anos
80, evidenciam uma rápida redução das taxas de fecundidade em todas
as regiões e grupos sociais [Simões e Oliveira (1988)]. Será que estes
dados corroboram, em parte, as teses que postulavam o papel do processo
de desenvolvimento econômico na queda da fecundidade?
Para responder a esta questão, alguns fatos devem ser levados em
consideração:
a) A década de 80 foi, para o Brasil e para a maioria dos países da América
Latina, um período problemático, com taxas negativas de crescimento
econômico, instabilidade crônica e inflação, elevado déficit público
e perda dos mecanismos de regulação estatal da economia e da
sociedade. Assim, se não houve desenvolvimento econômico, também
não foi possível associar tal desenvolvimento com a queda da fecundidade,
a não ser que fosse assumida a possibilidade de uma defasagem
temporal nesse processo de causação.
b) Estaria, portanto, para ser testada, a seguinte hipótese malthusiana:
quando as condições de vida e sobrevivência se tornam adversas, passa
a haver um espaço para a redução da fecundidade. A perspectiva do
pauperismo, gerando instabilidade e incerteza quanto ao futuro, traria
para as famílias a necessidade de reduzir o número de filhos, tal como
apontou Wong (1987).
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c) Para compensar essa hipótese, há o argumento de que a forte redução
da fecundidade, nos anos 80, seria o efeito retardado do intenso
processo de urbanização experimentado nos anos 70, o qual também
ocorreu nos anos 80 com menor intensidade. Nesse caso, estaria sendo
validada a teoria microeconômica na qual os filhos adicionais têm custos
crescentes diante dos benefícios que trazem para as famílias, na passagem
de sociedades rurais para urbanas.
d) Outra evidência que pode explicar a recente queda da fecundidade está
associada à difusão do uso de métodos contraceptivos, a partir de um
aumento do esclarecimento e do acesso da população aos mesmos. As
pesquisas recentes realizadas pelo IBGE e pela Sociedade Civil de Bem-
Estar Familiar no Brasil (BEMFAM)/Westinghouse evidenciam que a quase
totalidade das mulheres em idade reprodutiva no Brasil conheciam métodos
de planejamento familiar e sabiam aonde buscar esses métodos, e
quase dois terços das mesmas adotavam algum tipo de método.9 Nessa
perspectiva, a ação dos organismos de planejamento familiar, junto a entidades
do governo e da sociedade civil, tiveram a missão histórica de contribuir
para a redução da queda da fecundidade no Brasil, nos anos 80, e
mudar o comportamento das famílias pela instrução e informação sobre o
assunto.
Independentemente de qual das hipóteses tem mais aderência à realidade,
vale comentar que a dinâmica da fecundidade, diferentemente do
apontado por Chesnais (1986) no caso dos países centrais, tem sido o
componente mais discutido no recente processo de transição demográfica
no Brasil.10 Pouco se tem comentado a respeito da dinâmica da
mortalidade, especialmente nos anos 80, onde se vive o recrudescimento
de algumas endemias e o surto de epidemias antes erradicadas
ou controladas. Por outro lado, além do aumento das doenças crônicodegenerativas,
a crise fiscal e administrativa do Estado, bem como a
deterioração dos sistemas de produção econômica e proteção social,
tem acarretado aumentos na mortalidade por violências, acidentes de
9 Sobre este ponto, ver BEMFAM (1986). Nesta pesquisa, verifica-se que 99,6% das
mulheres de 15 a 44 anos, casadas ou em união, no Brasil, conheciam as pílulas
anticoncepcionais, e 95,4% sabiam da existência da esterilização feminina. Destas, 65,3%
usavam algum método e cerca de um terço das que não usavam, não o faziam por estarem
grávidas.
10 Uma crítica a este aspecto pode ser encontrada em Patarra e Oliveira(1988).
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trânsito, acidentes de trabalho e doenças profissionais, especialmente
nos grupos de idade madura da população.
Portanto, mesmo que as taxas de fecundidade sejam inferiores a 2,0
filhos por mulher, em meados dos anos 90, a mortalidade no Brasil ainda
está longe de atingir patamares equivalentes ao do período póstransicional.
Os elevados níveis de mortalidade no Brasil correlacionamse,
de forma mais profunda, com a natureza excludente do processo de
desenvolvimento econômico e com uma das estruturas de distribuição
de renda mais concentradas do mundo.
2 Algumas Hipóteses sobre Transição Demográfica,
Produtividade Sistêmica11 e Distribuição de Renda
A proposta deste estudo é de trabalhar com a hipótese de que a especificidade
do processo de transição demográfica em países com desenvolvimento
econômico excludente, como é o caso do Brasil, encontra-se no
caráter tardio e prolongado da queda da mortalidade.
Durante os anos 50 a 70, os serviços de saúde, ao incorporarem os
ganhos de escala da medicina preventiva, das medidas da vacinação em
massa e de alguns cuidados primários de saúde, possibilitaram uma
queda rápida da mortalidade em um primeiro momento, embora sem
alcançar os níveis vigentes nos países desenvolvidos. A partir desse
patamar, a mortalidade passou a cair mais lentamente, dado que existiria
a necessidade de "acumulações sociais positivas" para que a mortalidade,
principalmente a infantil, continuasse a cair no mesmo ritmo e
intensidade do período anterior. Essas acumulações sociais, as quais
têm efeitos basicamente sobre a qualidade dos recursos humanos de
que dispõe a sociedade como um todo,12 consistem basicamente em:
11 Define-se por produtividade sistêmica o estado de articulação e resolubilidade em que
se encontram os sistemas de produção e gestão públicos e privados, sejam voltados para a
produção econômica, sejam voltados para as chamadas acumulações sociais (melhores
níveis de instrução, saúde, cultura, qualidade de vida e criatividade).
12 As acumulações sociais são extremamente importantes no processo de recuperação
econômica, bem como na busca de alternativas para crises associadas à perda da eficiência
global ou de produtividade sistêmica de uma determinada sociedade. Nesse sentido, as
acumulações sociais se refletem nos padrões éticos, culturais, nos laços de solidariedade e
nos mecanismos pelos quais a coletividade enfrenta o individualismo e o esgarçamento do
tecido social. Dependendo do tipo de sociedade, tais acumulações podem estar mais ou
menos determinadas pelo papel do Estado.
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a) aumentos no gasto e na eficiência administrativa do setor público, nos
investimentos em saneamento básico e vigilância sanitária, e serviços de
saúde;
b) melhoria da distribuição de renda e maior acesso da população de
baixa renda à alimentação e instrução, visando reduzir os riscos de
mortalidade infantil por subnutrição e por falta de conhecimento sobre
medidas básicas de higiene doméstica;
Vale comentar, ainda, que existem diferenças substanciais na forma do
processo de ajustamento populacional, entre países que atravessam a
segunda fase da transição demográfica, com ritmos distintos de crescimento
econômico. Se o ritmo de crescimento é intenso, bem como a
produtividade sistêmica e a eficiência da administração pública são elevadas,
é possível que a segunda fase dure pouco, ingressando o país
imediatamente na terceira fase.
Analogamente, se ocorre ao longo de um forte período de estagnação
econômica, como parece ser o caso dos anos 80 e início dos 90 no
Brasil, é possível que a segunda fase se prolongue pela dificuldade de
completar o processo de queda da mortalidade. Se esta hipótese é verdadeira,
o caráter mais lento e prolongado da queda da mortalidade e
mais rápido da queda da fecundidade poderá trazer uma redução do
tamanho populacional no Brasil de forma mais rápida do que tem sido
estimado pelos demógrafos.
A continuidade do processo de instabilidade inflacionária, estagnação,
concentração de renda e ineficiência do Estado no Brasil poderia redundar,
portanto, ao final do milênio, em uma população mais reduzida do
que a esperada, na qual continuarão a prevalecer problemas crônicos de
excludência social, acesso deficiente às políticas sociais básicas por
parte da população de menor renda e, conseqüentemente, níveis de
mortalidade ainda não "ajustados" aos padrões vigentes no mundo desenvolvido.
As dificuldades em retomar consistentemente o desenvolvimento econômico
e as perspectivas sombrias quanto à geração de empregos poderão
excluir grandes contingentes populacionais do setor formal do
mercado de trabalho. O envelhecimento da população e o conseqüente
aumento das doenças crônico-degenerativas e das causas externas
(acidentes e violências) demandarão recursos cada vez mais vultosos,
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os quais, em virtude da crise fiscal do Estado, não poderão ser obtidos
facilmente, por meio de arrecadação ordinária. Com isso, poderá ocorrer
o aumento da mortalidade específica para os grupos de idade adulta,
ocasionando uma redução da esperança de vida ativa da população, a
exemplo do que vem ocorrendo nos ex-países socialistas do leste europeu
(especialmente Polônia, Hungria e Tchecoslováquia) nos últimos
dez anos.13
O conhecimento e a tomada de posturas preventivas diante de cenários
desta natureza demandariam estudos, em sintonia fina, sobre a relação
entre transição demográfica e dinâmica econômica, que levassem em
consideração os seguintes aspectos:
a) a relação entre transição demográfica e distribuição de renda;
b) a relação entre transição demográfica, produção de subsistência nas
atividades rurais e estruturação dos mercados regionais e nacionais;
c) a relação entre transição demográfica e dinâmica econômica federativa
(ou seja, das distintas Unidades da Federação);
d) a relação entre dinâmica demográfica e acumulações sociais (papel
dos sistemas de saúde, educação, assistência social), aliada à análise
do desempenho dos setores públicos e privados na construção do estoque
dessas acumulações.
Estas linhas de estudo exigem aprofundamentos históricos, conceituais,
metodológicos e estatísticos, hoje ainda superficiais, seja no Brasil, seja
nos países latino-americanos.
13 Ver, sobre este ponto, Gall (1992).
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